O Xadrez do STF: O julgamento de Bolsonaro e o embate sobre delação e sobreposição
A Suprema Corte se debruça sobre temas complexos do direito penal, com o resultado do julgamento podendo definir o futuro político do ex-presidente e criar precedentes.
Ricardo de Moura Pereira
9/1/20254 min read


O julgamento de Jair Bolsonaro e dos outros acusados na suposta trama golpista, que começa nesta terça-feira (2), deve se concentrar em três pontos jurídicos principais, de acordo com a opinião de advogados e professores.
Os especialistas esperam que o processo seja marcado por discussões sobre a validade da delação premiada de Mauro Cid, a classificação dos crimes e a definição de tentativa de golpe de Estado.
No Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro responde por crimes como:
Tentativa de golpe de Estado
Dano qualificado
Organização criminosa armada
Deterioração de patrimônio tombado
Tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito
O julgamento ocorrerá na Primeira Turma do STF, formada por cinco ministros. Até o momento, o único a sinalizar uma posição diferente da do relator, Alexandre de Moraes, foi o ministro Luiz Fux.
A delação de Mauro Cid, que também será julgado, é um dos pontos de potencial divergência. O militar inicialmente omitiu informações e depois alterou sua versão sobre pessoas importantes no caso, como o ex-ministro Walter Braga Netto.
A colaboração de Cid será analisada sob dois critérios principais:
Credibilidade: a confiabilidade das informações fornecidas pelo delator.
Voluntariedade: se as declarações foram feitas por livre e espontânea vontade, sem qualquer tipo de coação.
Esta será a primeira vez que o colegiado do Supremo analisará a fundo a delação de Cid. Embora a corte já tenha rejeitado pedidos das defesas para anular o acordo, a questão não foi debatida em profundidade na ocasião.
Enquanto isso, a revista Veja divulgou que um perfil no Instagram, supostamente de Mauro Cid, foi utilizado para discutir a delação. Essa ação poderia violar a cláusula de sigilo do acordo. No entanto, as conversas também podem indicar que o militar não agiu por vontade própria.
A falta de voluntariedade de Cid, como reportado pela Folha, tem o potencial de comprometer o uso das provas no processo. Já as omissões ou quebras de sigilo do acordo tendem a afetar apenas Cid, que corre o risco de perder os benefícios da colaboração.
A advogada Maíra Salomi, vice-presidente da Comissão de Direito Penal do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), aponta a validade da delação como um dos pontos centrais do julgamento. Segundo ela, grande parte da ação se baseia na delação de Cid.
"Não descartaria que tivéssemos votos divergentes com relação à rigidez do acordo, seja pela nulidade, seja pela descredibilidade dos depoimentos", afirma Salomi.
Enquadramento Penal e o Debate da Consunção
Outro ponto que provavelmente gerará discussão é a classificação dos crimes. Desde o início dos processos sobre os eventos de 8 de janeiro, a questão de se o crime de tentativa de golpe de Estado já abrange o de abolição violenta do Estado democrático de Direito tem sido um tópico de debate.
Essa questão jurídica é conhecida como consunção, onde um crime "absorve" o outro, e tem um impacto direto na pena final. A tentativa de golpe de Estado prevê uma pena de reclusão de 4 a 12 anos, enquanto a de abolição do Estado de Direito varia de 4 a 8 anos.
Embora o professor de direito penal Alexandre Wunderlich acredite na aplicação da consunção neste caso, ele ressalta que essa não é a posição majoritária no STF, especialmente na Primeira Turma.
Segundo Wunderlich, o mais provável é que o Supremo adote a tese de concurso material, onde o réu responde por crimes distintos e as penas são somadas, resultando em uma punição mais severa.
No entanto, para o professor, a decisão do caso dependerá da análise das provas e da avaliação individualizada da participação de cada réu, a fim de identificar os elementos de violência e grave ameaça que definem os crimes.
"Ele pensou, ele projetou, ele idealizou, mas ele cessou sua atividade e não concordou com a violência ou grave ameaça. Isso é um exame muito detalhado que, na minha opinião, é o que decide o caso”, explica Wunderlich.
Do Pensamento à Ação: Quando o Crime Começa?
Antônio José Teixeira Martins, professor de direito penal, adiciona um elemento crucial ao debate: a definição do momento em que a execução desses crimes se inicia.
O direito penal geralmente organiza o curso de um crime em fases:
Cogitação (a ideia)
Preparação
Execução
Consumação
Exaurimento
Normalmente, um ato só se torna punível a partir da fase de execução. No entanto, os crimes de tentativa de golpe e de abolição do Estado são especiais, pois a lei pune o perigo, e não o resultado final.
Teixeira Martins explica que a diferença entre atos preparatórios e a tentativa é amplamente discutida, mas o entendimento geral é que é preciso combinar elementos objetivos e subjetivos. Ou seja, deve haver uma ação real que coloque o bem protegido (o Estado ou o governo) em risco, e não apenas uma ideia.
A defesa de Bolsonaro argumenta que ele considerou alternativas, mas nada além disso. "Evidente que o estudo, cogitação e o 'brainstorm' de possíveis medidas legais, sob um viés analítico de sua viabilidade e submissão à lei, não pode ser tido como ato violento”, afirma a defesa.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) busca provar que as ações atribuídas ao ex-presidente e seus aliados ultrapassaram a linha da mera cogitação política e se tornaram uma tentativa de golpe. O STF terá a tarefa de analisar essas provas e decidir se essa linha foi de fato cruzada.