E a imprensa brasileira está praticando o mesmo crime de memória, eliminando a Nakba palestina e sendo utilizada para explicar o genocídio. O ano de 2015, com um grupo de brasileiros, fui à PALESTINA para aprender sobre os diversos aspectos da colonização israelense. Uma das localidades que conheci foi Lifta, hoje um parque nacional, muito visitado por judeus no fim de semana. Na visita, o grupo de brasileiros era um escândalo: cantavam, dançavam e faziam piadas. A aldeia é um sítio agradável se não se souber a sua história.
Lifta foi uma das aldeias despovoadas durante a Nakba, o termo que os palestinianos empregam para designar a destruição da sua nação com a criação do Estado de Israel. Depois das incursões militares das milícias sionistas em Lifta, o ataque de 9 de abril de 1948 na aldeia vizinha de Deir Yassin forçou os restantes habitantes da aldeia a abandonar o local.
Lifta é um caso de exceção entre as aldeias palestinianas que foram despovoadas no que é hoje Israel: as suas ruínas foram conservadas. É possível ver nas velhas casas de pedra os buracos no telhado que os soldados sionistas abriram para impedir o regresso dos antigos habitantes. Os palestinianos nem sequer vivem longe de lá. A maioria deles mora em Jerusalém Oriental e são formalmente residentes ao abrigo da lei israelita, mas são até hoje impedidos de regressar por Israel.
Durante a minha visita em 2015 que um grupo de jornalista brasileiro que estiveram em Lifta na companhia do meu amigo palestiniano Obay Odeh. Obay é neto de Yacoub Ahmad Odeh, que foi forçado a deixar a sua casa na aldeia quando tinha oito anos No final da tarde, após a visita dos brasileiros, durante uma conversa com o grupo, Obay pediu a palavra. Ele ressaltou o desrespeito que foi a visita a Lifta. Um desrespeito à memória da catástrofe do povo palestino. Uma limpeza étnica que expulsou mais de 750.000 pessoas, destruiu mais de 400 aldeias e matou mais de 15.000 palestinianos.
Para ilustrar o seu ponto de vista, Obay comparou o comportamento do grupo com a visita do dia anterior ao Yad Vashem, o Museu do Holocausto em Jerusalém, que fica a poucos quilómetros de Lifta. O grupo manteve-se sóbrio e respeitoso durante a visita, que retratou o genocídio sofrido pelos judeus na Europa. Obay chamava a atenção para algo que percebi ali pela primeira vez: enquanto o Holocausto judeu era sagrado para nós, brasileiros, a Nakba não era sequer profana. Não era nada, eu diria. Não existia no nosso imaginário construído pela mídia e pela história sob a hegemonia da narrativa ocidental e eurocêntrica.
Da espetacularização do genocídio judeu ao apagamento da Nakba
A percepção do Holocausto judeu como um evento sagrado e incomparável na história tem sido construída socialmente nas últimas décadas. Após 1945, a história judaica a respeito dos eventos da II Guerra Mundial retratava, principalmente, a resistência judaica antifascista: o poder e a força dos judeus em resistir, não o seu sofrimento.
Até o documentário ‘Shoah’, do diretor francês Claude Lanzmann, ser lançado em 1985, as atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus na Europa eram pouco conhecidas do grande público. Os trabalhos de Elie Wiesel, um romeno sobrevivente de Aushwitz, como ‘Noite’, de 1986, foram centrais para popularizar a narrativa judaica do Holocausto. O que se seguiu foi uma espetacularização do Holocausto judeu, principalmente nos EUA, que tem servido para justificar os crimes cometidos por Israel e o apoio incondicional dos EUA ao país.
Enquanto o Holocausto judeu era sagrado para nós, brasileiros, a Nakba nem chegava a ser profana.
Importante ressaltar: não estou criticando a recuperação da memória do Holocausto judeu. Ela é fundamental para compreender a chaga que este genocídio representa para a vida de milhões de judeus e para a humanidade. Mas este processo de espetacularização tornou o Holocausto um genocídio único na história da humanidade. E essa excepcionalidade tem sido instrumentalizada por Israel para tornar as suas ações excepcionais sob os olhos do mundo, como o genocídio em curso em Gaza.
Por essa razão, a declaração de Lula comparando o atual genocídio israelense contra os palestinos ao genocídio nazista contra os judeus tem provocado tamanha celeuma.
“A palavra genocídio não é um sinônimo de Holocausto”, disse, por exemplo, Michel Gherman, importante intelectual judeu sionista brasileiro e historiador do sionismo. “O Holocausto é a maior chaga da história da Humanidade, um momento de horror que nunca poderá se repetir. Não é medida de comparação com nada. Fazer isso é banalizar o mal absoluto e a determinação de exterminar um povo”, postou Vera Magalhães, jornalista e apresentadora do Roda Viva, da TV Cultura.
Aqui não quero negar algumas singularidades do Holocausto, como os campos de extermínio com câmaras de gás. Contudo, todo genocídio possui singularidades e é excepcional para o povo vitimado. Como o próprio Gherman demonstra em artigo, os palestinos também entendem a Nakba como excepcional.
A Shoah também é excepcional para os judeus europeus, mas exclusivamente aos judeus europeus. Aqui entra o primeiro memorícido, isto é, o apagamento da memória que a narrativa contemporânea do Holocausto promove: tornar a tragédia dos judeus europeus universal para todos os judeus.
Os judeus que viviam na África e na Ásia no início do século 20 não sofriam a mesma subjugação racista que os judeus na Europa. Embora viver em territórios de maioria muçulmana, particularmente sob o Império Otomano, tivesse seus problemas, os judeus orientais não sofriam perseguição racista como a enfrentada pelos judeus europeus. Como diz o professor iraquiano-israelense Avi Shlaim, “antissemitismo não era um problema árabe, mas europeu”.
O segundo memoricídio da narrativa contemporânea do Holocausto diz respeito das outras vítimas do nazismo, como os ciganos, negros, LGBTQs, comunistas e antifascistas, que também estiveram sob custódia alemã em campos de concentração e extermínio. Embora o racismo anti-judeu tivesse uma centralidade, os judeus não foram as únicas vítimas. Tornar o nazismo uma questão exclusivamente judaica oculta camadas importantes do nazifascismo e o mal que representou para a humanidade como um todo.
Isso ficou evidente, por exemplo, quando o podcaster Monark se declarou contrário à “criminalização de um partido nazista” no Brasil, em 2022. Para se desculpar, Monark se declarou defensor do estado de Israel. A defesa do estado sionista é um expediente muito comum entre notórios antissemitas, como Steve Bannon, ex-assessor de Donald Trump, Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria, e Marine Le Pen, líder da extrema-direita francesa.
Fonte Intercept Brasil