A força militar brasileira deturpam história do Brasil ao militarizar o 7 de setembro

 

As comemorações da independência tornara-se propaganda militar, contribuindo para a perpetuação da narrativa de que somos independentes por causa delas — o que não é um fato histórico.

Uma das formas de avaliar o nível de democracia no mundo é analisar a participação dos militares nessas sociedades. Com a aproximação do dia 7 de setembro no Brasil, uma tarefa interessante é examinar como os militares participam das comemorações democráticas da liberdade e das comemorações da nossa independência.

Na maioria deles, os dias nacionais são comemorações públicas, que envolvem direta e principalmente a participação do público — e não apenas das forças armadas. Mesmo em países onde os militares têm um papel importante na independência, por meio das guerras, seu papel é, em geral, menor do que observamos na comemoração do Brasil.

Comecemos com um exemplo de democracia liberal no mundo, os Estados Unidos. Lá, a celebração da independência ocorre no dia 4 de julho, referindo-se à Declaração de Independência assinada pelo Congresso Continental em 1776. A consolidação da independência só foi realmente possível durante a Guerra Revolucionária Americana contra as forças britânicas, entre 1775 e 1783. Ou seja, os soldados estavam entre os líderes do movimento de libertação.

Porém, desde as primeiras cerimônias, o protagonismo não era deles, mas da comunidade. Originalmente ecoando as comemorações do aniversário do monarca britânico, o dia foi comemorado com sinos tocando, discursos, procissões solenes e fogos de artifício. Quando a República foi incorporada, houve brindes em cerimônias conjuntas e os primeiros desfiles, seguidos de espaços de discurso político, bebidas e reuniões públicas para celebrar o novo estado.

Com pequenas mudanças, que evoluíram para churrascos em casa e em comunidades públicas, os desfiles ainda existem, mas de uma forma bem diferente da nossa. Há, é claro, a presença de desfiles e soldados — em geral, em formação, e seus grupos — forças diferentes, mas nem nas redes sociais são os únicos ou personagens.

Os desfiles são caracterizados por blocos muito diferentes, incluindo carros alegóricos, danças, balões gigantes, carros antigos ou personalizados, fantasias e muitas cores. São desfiles civis, que podem incluir, em tom festivo, bandas militares. Não há desfiles militares como demonstração de força, algo que não é desejável ali — inclusive os próprios soldados.

Quando o ex-presidente Donald Trump pediu ao seu Comandante-em-Chefe que mostrasse um desfile militar em Washington em 4 de julho, ele recebeu a seguinte resposta do general Paul J. Selva: “Eu não cresci nos Estados Unidos, na verdade, cresci nos Estados Unidos.” Em Portugal. Portugal era um estado totalitário — e os desfiles (militares) mostravam pessoas com armas. E neste país, não fazemos isso. Não é quem somos.”

Se entrarmos no velho mundo, veremos alguns padrões diferentes, com grande presença de jogos militares. Na Itália existem duas celebrações nacionais de ajuntamentos de massa, uma com celebrações militares e outra com celebrações públicas. O feriado nacional mais famoso do país é 25 de abril, Dia da Libertação, comemorando a libertação do país do nazi-fascismo e a saída da Itália da Segunda Guerra Mundial.

Após mais de duas décadas de ditadura fascista, sob o governo de Benito Mussolini com o apoio da monarquia, a oposição italiana conseguiu derrubar o governo. Portanto, este dia tem o caráter de celebrar a paz, a liberdade e a resistência à violência. O papel principal dessas comemorações é público, nas festas populares que tem como tema principal a música Bella Ciao — agora muito popular na série La Casa de Papel. O papel dos militares é pequeno e minimizado na memória da resistência italiana.

O Dia da República, 2 de junho, no entanto, comemora o referendo de 1946, que, após a Segunda Guerra Mundial, pôs fim à monarquia italiana. Hoje é comemorado principalmente com um desfile militar em Roma, mas nem sempre foi assim.

Semelhante ao Brasil em sua inflexibilidade política, a Itália tende a apreciar as exibições militares com mais frequência durante os períodos de governantes nacionalistas. Desde o início das comemorações, há desfiles militares inesperados há muito tempo. Incluído pela primeira vez nas comemorações em 1950, saiu de cena entre 1977 e 1983 e, após um breve retorno, também ficou de fora entre 1989 e 1999. Nesses tempos, o 2 de junho era comemorado em festas públicas, com representantes das forças armadas, mas sem liderança.

Por não incluir militares, o dia nacional da Alemanha é, entre as democracias liberais consolidadas, o que mais reflete o controle absoluto dos civis sobre as suas forças armadas.

O desfile militar voltou à cena na Festa da República a partir de 2000, sob a liderança de Carlo Ciampi, mas ainda assim, com vários elementos brasileiros. O desfile é tradicionalmente um sinal de submissão militar ao poder civil, não uma demonstração de força ou uma tentativa de intimidá-lo. Na primeira comemoração que teve um desfile militar, depois que o presidente Luigi Einaldi colocou uma coroa de flores no monumento ao Soldado Desconhecido, os soldados abandonaram sua formação e se curvaram ao presidente em sinal de aceitação do controle popular.

Na Alemanha, o principal feriado nacional é 3 de outubro, dia da Unificação alemã. Em 1990, após 45 anos de divisão entre a Alemanha Oriental (República Democrática Alemã, sob o comando da União Soviética) e a Alemanha Ocidental (República Federal da Alemanha, sob a influência dos Estados Unidos e da OTAN), um levante popular dos lados, ambos provocaram um conflito entre os Estados Unidos e a OTAN. Derrubar o Muro de Berlim, que literalmente dividiu a capital.

Tendo sofrido muito com os militares durante o regime nazista e durante a Guerra Fria, não é de surpreender que as forças armadas não tenham participado das principais comemorações do feriado do país. As celebrações, celebradas em todo o país, são todas comunitárias, mostrando paz e união. Há, em geral, a escolha de uma cidade para sediar a festa oficial nacional, mas também as comemorações municipais em todo o país. É comemorado com eventos culturais, fogos de artifício, apresentações de teatro, música, comida, bebidas e barracas de doces. E, naturalmente, as feridas deixadas pelo exército alemão da primeira metade do século passado foram bem curadas pela sociedade.

No Reino Unido, a maior potência colonizadora europeia, não há, curiosamente, uma data nacional única. E, mesmo tendo suas forças armadas dominado grande parte do mundo entre os séculos 17 e 20, nas diversas datas comemorativas não se vê desfiles militares com demonstração de força. Sendo uma das únicas monarquias entre as democracias liberais consolidadas, e sendo os reis e rainhas integrantes das forças armadas, há desfiles militares alegóricos, mas sem ostensivo armamento ou militarização.

O aniversário oficial da rainha, celebrado no verão, é talvez um dos eventos nacionais de maior celebração popular. O objetivo ali, ainda que haja honras militares associadas ao histórico da monarquia, é a celebração da família real, não há honra dos militares. Grandes festivais públicos, em especial nos anos de jubileu, são vistos por Londres e pelo país, mas nada semelhante a desfiles militarizados.

Dentre as democracias liberais consolidadas, a única em que há um extensivo desfile militar com demonstração de força é a França. A comemoração da Queda da Bastilha, em 14 de julho, é a maior parada militar do hemisfério ocidental. Torna-se importante uma revisão histórica para entender o papel que a parada foi tendo ao longo do tempo.

O que houve no Brasil foi uma apropriação indevida de um movimento civil pelos militares, em uma construção de narrativa que acabou se consolidando na era republicana.

Embora não seja isenta de críticas, pois celebra consistentemente o poder militar e o passado colonial da França, a crescente incorporação de valores e tema social mostra que o desfile militar de 14 de julho na França não é uma ameaça à ordem democrática. . E propostas para acabar com o desfile militar e realizar um desfile público já fazem parte da conversa política francesa.

Assim chegamos ao dia 7 de setembro no Brasil. Nosso principal dia nacional é comemorado com desfiles militares, como na França e na Itália. Mas, diferentemente desses países, não há sinais de submissão ao poder público ou processos que tragam uma agenda pública para as comemorações. Portanto, eles são um evento militar especial, dando ao público o papel apenas de espectador.

A independência do Brasil foi resultado de um processo político, não de uma guerra. O retorno da família real a Portugal, após a Revolução do Porto, e a necessidade de reorganização da economia portuguesa levaram a uma série de medidas metropolitanas que reduziram a liberdade política e econômica no Brasil colonial. Isso gerou uma série de descontentamento por parte da elite local, que passou a pressionar o Príncipe Regente, depois Imperador D. Pedro I, para manter a antiga independência e, posteriormente, a independência.

É verdade que houve de fato um papel do Exército Imperial na consolidação da liberdade. Houve campanhas militares na Bahia, Maranhão, Pará e na Cisplatina (hoje Uruguai), que deixaram cerca de 1.300 mortos. No entanto, há uma diferença gritante em outras áreas que conquistaram a independência através da luta armada. Estima-se que a Guerra Revolucionária dos EUA tenha causado a morte de cerca de 70.000 pessoas e, de qualquer forma, os militares não são os protagonistas da celebração da liberdade.

O que aconteceu no Brasil foi o abuso da organização militar dos militares, em uma estrutura narrativa que se consolidou finalmente na era republicana, que teve governantes militares a maior parte do tempo. A frequente intervenção das Forças Armadas brasileiras na política ajudou a estabelecer o 7 de setembro não como um evento público, mas como um momento de mostrar as forças militares ao povo do Brasil – como aconteceu em Portugal, como General. Selva disse a Trump.

O uso dos militares como meio de intimidação do poder público no Brasil não é algo novo em nossa história. O próprio D. Pedro I, na Noite da Dor, ordenou ao Exército que atacasse o Congresso Constituinte em 1823. Sem falar no golpe de estado liderado pelos militares: a declaração da República, o golpe de 3 de novembro que fechou o país. Congresso em 1891, a Revolução de 1930, o golpe do Estado Novo, a deposição de Getúlio Vargas e o golpe de 1964.

Recentemente, em sua tentativa de golpe, Jair Bolsonaro, capitão da reserva do Exército, convocou uma exibição simulada de tanques da Marinha na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para intimidar o Congresso Nacional. Isso sem falar no tweet do general Villas Bôas, preparado pelo Alto Comando do Exército, para intimidar o Supremo Tribunal Federal. E o embate entre os militares e o golpe de 7 de setembro está de volta na fracassada tentativa de golpe de Bolsonaro na comemoração do Dia da Independência de 2021.

Este ano, não é novidade que Bolsonaro usará o Exército (ou o usará) como ferramenta política no dia 7 de setembro. Que haja protestos eleitorais a favor do presidente no mesmo local do memorial militar é algo que não pode ser aceite em nenhuma democracia integrada.

As 8 horas do espetáculo militar foram pensadas para associar os militares à figura do Presidente da República e seus programas políticos e eleitorais, algo que prejudica brutalmente o equilíbrio das relações civis e militares, mostrando o preconceito dos Militares, aterrorizando parte da sociedade civil e das instituições políticas do Brasil.

Em todas as democracias liberais ao redor do mundo, é impensável que os militares se tornem figuras políticas. E, mesmo onde há desfiles, é notório o tom público e total submissão dos militares ao seu comando.

Com uma história tão longa de intervenção doméstica e o uso dos militares para aterrorizar o público e as instituições, é hora de questionar a narrativa militar, e começar pelo cancelamento das comemorações de 7/7 seria um bom caminho a percorrer. Celebrar a independência não pode continuar como um espetáculo de propaganda militar, que contribui para perpetuar a narrativa de que somos independentes apenas por causa deles – o que não é um fato histórico.

Fonte da pesquisa da matéria  - theintercept


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